3 de janeiro de 2018

Outras cozinhas

O vinho de talha entrou no circuito das modas. Pode ser que isso ajude a recuperar essa forma tradicional de fazer vinho e que, ao contrário das modas, não seja apenas um fenómeno passageiro.
Não que o vinho de talha não tenha existido sempre. Simplesmente, estava (e ainda está, em grande medida) confinado a certas circunstâncias de pequena produção. Deve dizer-se, em abono da verdade, que as tendências ecológicas e ambientais concorreram para fazer vingar o actual renascimento do vinho de talha como produto de eventual sucesso comercial, mas a talha tradicional das adegas alentejanas é um facto ancestral cuja existência nada deve a esse tipo de preocupações.

A talha do vinho novo que se abria no S. Martinho, depois da curtimenta dos primeiros frios, é um hábito que a vida moderna foi minguando até ao quase desaparecimento. Alguns resistentes, sobretudo ligados ao negócio das adegas e tabernas, foram os guardiães desses processos até há pouco.

Um desses lugares onde o vinho de talha resistiu e sobreviveu é adega/restaurante País das Uvas, em Vila de Frades, Vidigueira. Não longe da casa onde nasceu Fialho de Almeida (1857-1911), a adega adoptou o nome de um dos seus livros de contos, País das Uvas, publicado em 1893.



No restaurante come-se bem. Comida tradicional bem confeccionada. Os petiscos existem na ementa sempre, mas há aqueles que só por encomenda, sobretudo a caça. O espaço actual recorda a adega antiga e o seu ambiente, com as respectivas talhas, as belas mesas e cadeiras de madeira rústica, os objectos de artesanato local ou regional. Parece que se criou o hábito de os clientes escreverem no bojo da talhas, o que era dispensável. Nos meses de frio há sempre lume aceso e o ambiente, grande e com enormes pés-direitos, torna-se acolhedor. Quem lá vai sabe ao que vai, e isso é também, de algum modo, reconfortante. Não é raro que alguns comensais, ou «bebensais», cantem alguma moda alentejana.


Comeram-se azeitonas com pão (e quando as duas coisas são boas, não há melhor petisco), um queijinho de ovelha curado, ovos com silarcas*, borrego assado no forno, com sabor, mas onde o osso era mais abundante que a carne. A encharcada da sobremesa, essa merecia ser comida de pé, por respeito.

O vinho novo, vertido da talha para o alguidar e daí retirado para os jarros (ou para os garrafões...) merece toda a atenção e a devida vénia. Estruturado e macio, com os sabores do barro vincados mas na medida certa, vale a pena lá ir prová-lo, e comer alguns dos bons petiscos que por lá se fazem.


Amanita ponderosa – Nomes vulgares, populares: silarcas, siricaia, abesós-de-primavera, tortulho – Carne firme, compacta, branca, avermelhando no corte, odor a terra e sabor adocicado.
In Cogumelos do Campo até à Mesa, Conhecer, Conservar e Cozinhar. Maria de Lourdes Modesto e J. L. Baptista-Ferreira, Verbo, 2010.

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