19 de abril de 2015

A minha vizinha de cima* – crónicas

A minha vizinha de cima não foi ver as Sombras de Grey. Esteve vai-não-vai, mas o temor de ser vista acabou por ser mais forte. O livro, folheou-o algumas vezes na Fnac, sempre numa pressa atabalhoada, saltando linhas, parágrafos, páginas — à procura de alguma coisa, embora sem saber bem o quê. 

Com os farrapos do que lhe chegou aos ouvidos, ostensiva e falsamente desatentos, algumas ideias começaram a arrumar-se-lhe na mente, sem remédio.

Pouco a pouco, formou um difuso, e confuso, imaginário equestre de espáduas retesadas e garupas luzidias, de arreios ornados de metais: selas, bridões, antolhos, rédeas, chibatas — flamantes línguas de couro negro.

Foi assim que, ao longo de muitos dias, se multiplicou, ufana, em trotes e pinotes, cabriolas e cavalgadas. Porém, o tempo às éguas também faz a sua mossa. E não se reconheciam naquele sobressalto dos nervos as qualidades que Frei António das Chagas atribuiu ao cavalo do Conde de Sabugal, que dava grandes curvetas. A bruteza sim, mas não a galhardia. E não se prestando a andadura à música, as salsas não lhe saíam airosas. Galopes de pau, dir-se-ia.

Sempre que aquele alvoroço cavalar a tomava, outras imagens a assaltavam, insistentes. No meio daqueles tormentosos prazeres, involuntariamente lhe apareciam — ele há coisas extraordinárias  as figuras de Rod Stewart e de José Sócrates, ofuscantes clarões.

Roderick fazia-lhe talvez lembrar as promessas e ousadias das primeiras fervuras do sangue, numa juventude tão distante quanto próxima. As promessas de José, essas, provocavam-lhe um anelante arfar, imperceptível e ao mesmo tempo indisfarçável, e uma espécie de taquicardia que, curiosamente, lhe pulsava no ventre.

E, nesses momentos, compungida sonhadora, a ideia do mortificado no seu retiro eborense enchia-lhe o espírito de sombras, que ela — mal ou bem — intimamente associava às de Grey.


Jorge Colaço
(convidado deste blog)

* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência. 

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