A minha vizinha de cima tem uma expressão
peculiar (olhos abertos, como que repuxados pelas sobrancelhas alçadas em arco)
e um gesto que a acompanha (o antebraço formando um ângulo apertado e a mão –
direita – oblíqua de palma bem virada para cima). A fisionomia e o gesto são
sublinhados pelo movimento de afundar o pescoço entre os ombros e a sequência
termina com um pequeno ajustamento dos óculos sobre o nariz.
A expressão, gesto e movimento exprimem inevitabilidade
e inocência («não posso fazer nada» ou «o que poderia eu fazer mais?») ou
clarividência («eu não disse?»). O reencaixe dos óculos simboliza uma visão
racional e lógica.
Os filhos e o marido estão familiarizados com
a gama de significados que tal expressão enfatiza e sabem que, a partir daí, não
vale a pena dizerem mais nada. Se insistirem, as sobrancelhas erguer-se-ão
ainda mais, o pescoço afundar-se-á mais profundamente, e a mão, oblíqua e de
palma bem virada para cima, ganhará um veemente movimento laminar. A voz
enriquecer-se-á de atonalidades.
Os filhos há muito que desistiram. Sobretudo
quando a conversa entra na política. Aí, o «eu» dilui-se e desagua no «eles»:
«não podem/puderam/poderiam fazer nada» (e aqui o seu coração, treinado para se
orientar para os sinais de riqueza e poder, ainda pende sobretudo para o
socialismo socrático). E, claro, agora, cada vez que tem de lhes negar alguma
extravagância, solta um «eu bem disse que isto ia acontecer, não posso fazer
nada». Que é aliás o discurso do governo de que ela não gosta.
Jorge Colaço
(convidado deste blog)
* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência.
Olá! Precisava do seu contacto telefónico (com urgência) por causa prémio do passatempo do Bacalhau Dias. Pode enviar-me por msg ou mail?
ResponderEliminarBeijinhos!