25 de maio de 2013

A minha vizinha de cima* – crónicas 6


A minha vizinha de cima é funcionária pública por afinidade. O que significa que é casada com um funcionário público. Desde há muitos anos que essa ideia tépida lhe conforta a existência.

O serviço do marido – num ministério pesado – proporcionou-lhe um regular círculo convivente, no qual introduziu uma cunhada e uma amiga da cunhada, relacionada com a família de um actor que já entrou em várias telenovelas.

Encaixou perfeitamente naquele pequeno mundo do funcionalismo, tão entranhado e tão de acordo com a sua ordenação do mundo: discute as chefias, conhece os processos, as fraquezas e os fracassos, as injustiças e os golpes, as teias de tricas, sabe quem disse o quê e o que ficou por dizer.

Discute os cortes nos subsídios da Bertília, da Sandra, da Carla Sofia, do Sr. Raúl, do Venceslau e da pequena Andreia, tão querida. Não percebe como é que o Castro trocou de carro, nem como é que a lambisgóia da Flávia consegue comprar tanta roupa nova de marca. Sabe que o Dr. Henriques e a Maria do Céu, que é casada, têm um caso. Sabe que o Timóteo, o preto, apõe sempre com um esgar de desprezo, tem duas mulheres. Sabe que especialidade médica frequenta a Lena e a verdadeira razão da baixa da Tininha. Tem um ódio mortal ao jovem Hélder, o que andou a estudar à noite, vai a restaurantes, e teima em ficar no serviço fora de horas a despachar assuntos pendentes. Conhece todos os desaires dos filhos e filhas de todos os que se cruzam no elevador principal do serviço.

Tanto conhecimento deixa-a a arfar de indignação.

Ao mesmo tempo que domina o serviço – seria capaz de o dirigir a qualquer instante –, e já não vive sem ele, paradoxalmente, abomina-o. E acrescenta a todos os seus motivos, um outro motivo secreto.

É que, por coincidência, nenhum dos seus filhos se dá com filhos de funcionários públicos. Quase todos os pais e mães dos amigos dos filhos estão desempregados, ou montaram um negócio, alguns com sucesso visível, ou têm profissões liberais, ou trabalham no sector privado. E, entre eles, a minha vizinha de cima sente-se perdida.




Jorge Colaço
(convidado deste blog)

* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência. 

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