A minha vizinha de cima é funcionária pública
por afinidade. O que significa que é casada com um funcionário público. Desde
há muitos anos que essa ideia tépida lhe conforta a existência.
O serviço do marido – num ministério pesado – proporcionou-lhe
um regular círculo convivente, no qual introduziu uma cunhada e uma amiga da
cunhada, relacionada com a família de um actor que já entrou em várias
telenovelas.
Encaixou perfeitamente naquele pequeno mundo
do funcionalismo, tão entranhado e tão de acordo com a sua ordenação do mundo:
discute as chefias, conhece os processos, as fraquezas e os fracassos, as
injustiças e os golpes, as teias de tricas, sabe quem disse o quê e o que ficou
por dizer.
Discute os cortes nos subsídios da Bertília,
da Sandra, da Carla Sofia, do Sr. Raúl, do Venceslau e da pequena Andreia, tão
querida. Não percebe como é que o Castro trocou de carro, nem como é que a lambisgóia
da Flávia consegue comprar tanta roupa nova de marca. Sabe que o Dr. Henriques
e a Maria do Céu, que é casada, têm um caso. Sabe que o Timóteo, o preto, apõe
sempre com um esgar de desprezo, tem duas mulheres. Sabe que especialidade
médica frequenta a Lena e a verdadeira razão da baixa da Tininha. Tem um ódio
mortal ao jovem Hélder, o que andou a estudar à noite, vai a restaurantes, e teima
em ficar no serviço fora de horas a despachar assuntos pendentes. Conhece todos
os desaires dos filhos e filhas de todos os que se cruzam no elevador principal
do serviço.
Tanto conhecimento deixa-a a arfar de
indignação.
Ao mesmo tempo que domina o serviço – seria
capaz de o dirigir a qualquer instante –, e já não vive sem ele, paradoxalmente,
abomina-o. E acrescenta a todos os seus motivos, um outro motivo secreto.
É que, por coincidência, nenhum dos seus
filhos se dá com filhos de funcionários públicos. Quase todos os pais e mães
dos amigos dos filhos estão desempregados, ou montaram um negócio, alguns com
sucesso visível, ou têm profissões liberais, ou trabalham no sector privado. E,
entre eles, a minha vizinha de cima sente-se perdida.
Jorge Colaço
(convidado deste blog)
* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência.
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