17 de abril de 2013

A minha vizinha de cima* – crónicas 5


A minha vizinha de cima gosta que a vejam e tratem como uma Senhora. Péla-se por ser lambida pela linguagem catita do homem da mercearia, agora minimercado fluorescente, que articula com solene clareza «senhora dona» em vez do breve «sôdona» reservado às velhas da vizinhança. Reage com um saracoteio de gata velha à lisonja de uma pequena vénia à sua passagem, mas responde com frieza ao desdobrar do cumprimento.


Gosta de inspirar respeitinho. E o respeitinho é, como se sabe, uma coisa que se manifesta de baixo para cima.

Do cimo da sua pirâmide privativa foi construindo a sua imagem de Senhora de respeito, passivamente manifestada — mona lisa inquieta — num sorriso sonso e na fuga do olhar para um ponto para além da orelha direita do interlocutor, e que encontra o seu lado activo no exercício, igualmente estrábico, de sublinhar que o seu é um olhar descendente, mas não condescendente.

Por exemplo, se lhe contam um infortúnio, responde: «isso, comparado com o que me aconteceu…»; se lhe relatam um caso de fortuna, responde com idêntica réstia de desdém: «isso é que foi sorte, mas se fosse eu tinha era muito cuidado…»; se lhe inculcam a dramaturgia de alguma desfeita, rosna: «isso comigo fiaria muito mais fino…».

Se lhe perguntam se, por acaso, não viu aqui há dias…, reage empinando o rosto com altivez, dissimulando o rubor: «não sou mulher de janela».

Se lhe confidenciam um caso picante, empina o rosto ruborizado, simulando altivez: «Comprei cortinas novas, tenho bainhas para fazer, calhas para fixar, sanefas para pôr, vidros para lavar, marido para atender». 



Jorge Colaço
(convidado deste blog)

* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência. 

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