A minha vizinha de cima tem uma relação com a internet igual à que os
prisioneiros de guerra têm com o arame farpado: olham-no obsessivamente, querem
passar através dele, para lá dele, mas sabem que isso não acontecerá
impunemente.
Há dias, remexendo numa caixa de fotografias antigas, reviu-se mais
nova, mais magra, mais activa, mais liberta, mais convivial. E teve um baque.
Correu para o espelho. Enfim… não correu: deu dez voltas à casa e arrastou
compulsivamente umas quantas cadeiras até chegar ao quarto, que era a sua meta
semiconsciente.
Corou intensamente por se saber a olhar-se. Ao fim de poucos minutos
esse rubor era já fruto de uma raiva surda, desconhecida e desmesurada. Num transe
de agnosia, tão assolador quanto passageiro, tomou uma decisão íntima e, de
momento, inabalável.
Ligou o computador, acedeu ao motor de pesquisa e digitou a palavra
facebook. O queimor que a acendia, calor de obstinação, garria-lhe o rosto, sufocava-lhe
o peito como o vento suão, que faz febre e esfarela os ossos.
A minha vizinha de cima sentia o apelo súbito de sair de si, de
convocar em segredo uma comunidade de olhares, de se associar com o mundo,
coisas que não estão na sua natureza. E, para provar que nada estava perdido, decidiu-se,
desajeitadamente, a fazer o trottoir nas avenidas da Rede.
Jorge Colaço
(convidado deste blog)
* Qualquer semelhança das personagens destas crónicas com pessoas existentes é pura coincidência.
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